quinta-feira, 9 de novembro de 2017

As palavras e o relógio



As palavras que ficam por escrever irei colocá-las num testamento, junto com os objectos que são a minha paixão: um CD do Leonard Cohen que o meu filho Bruno me ofereceu, a fotografia da minha esposa de azul vestida, a guitarra acústica Ibânez que a viúva de um amigo me ofertou, os livros que escrevi que pouca gente leu, o CD que gravei que pouca gente ouviu, as cartas de um baralho por abrir, por não saber jogá-las e a caneta que o meu filho me prendou num dos meus aniversários, reservada para assinar o meu documento de resignação, se tinta ainda tiver.
Sempre tive uma relação conflituosa com o meu relógio. Melhor, com esse adorno que agora confino a uma gaveta da minha mesa-de-cabeceira. A gaveta é útil para a medicação, as horas também o são sempre que delas tiro o partido das minhas alegrias, em jeito das memórias. E, quando os ponteiros são como pássaros dados ao vento, caem as folhas do meu calendário, os homens inscrevem a sua história com nome de séculos e os nomes das coisas afogam-se nas páginas dos dicionários. A mim, aqui junto das letras que ninguém lê – até ao dia da sua celebração, sem censores ou negritude sobre os olhares -, bastam-me o delírio da imaginação e a consolação dos meus humanos apetites.

Há pouco a campainha tocou, era o carteiro: tinha uma notificação das Finanças (pensei que seria por não ter declarado a gaiola da caturra, que nunca teve inquilino), mas só amanhã abro a carta. A máquina deu sinal de que a roupa estava lavada, onde a minha camisa predilecta estava ainda baloiçando, essa que uso sem gravata. A relação conflituosa com o meu relógio alivia-me da percepção de que, afinal de contas, aquilo que mais me incomoda são os espelhos: quando aparo as sobrancelhas, ao limpar o pó da moldura que faz lembrar a minha infância. E corro desenfreado adentro do sonho, atiro, como o pregão do velho amolador, palavras contra as portas da minha casa, enquanto os objectos do meu desejo são rostos sem nome onde as rugas fazem lembrar a entranha duma árvore. Um destes dias vou morar, numa gaveta mais comprida daquela onde o meu relógio repousa. Pode acontecer que alguém me faça companhia na viagem, nem que sejas tu ou vocês a quem as minhas mãos oferecem as palavras que ficaram por dizer. Dentro em breve, vou atrasar as horas, vou tirar proveito do conhecimento das leis celestes, mas com o problema irresolúvel de não me sentir pecador.