As palavras que ficam por escrever irei colocá-las num
testamento, junto com os objectos que são a minha paixão: um CD do Leonard
Cohen que o meu filho Bruno me ofereceu, a fotografia da minha esposa de azul
vestida, a guitarra acústica Ibânez que a viúva de um amigo me ofertou, os
livros que escrevi que pouca gente leu, o CD que gravei que pouca gente ouviu, as
cartas de um baralho por abrir, por não saber jogá-las e a caneta que o meu
filho me prendou num dos meus aniversários, reservada para assinar o meu
documento de resignação, se tinta ainda tiver.
Sempre tive uma relação conflituosa com o meu relógio.
Melhor, com esse adorno que agora confino a uma gaveta da minha mesa-de-cabeceira.
A gaveta é útil para a medicação, as horas também o são sempre que delas tiro o
partido das minhas alegrias, em jeito das memórias. E, quando os ponteiros são
como pássaros dados ao vento, caem as folhas do meu calendário, os homens
inscrevem a sua história com nome de séculos e os nomes das coisas afogam-se
nas páginas dos dicionários. A mim, aqui junto das letras que ninguém lê – até
ao dia da sua celebração, sem censores ou negritude sobre os olhares -,
bastam-me o delírio da imaginação e a consolação dos meus humanos apetites.
