quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Que triste realidade.




"No final de uma tarde fria, recebo a visita inesperada dos meus dois filhos. Um médico, outro engenheiro. Ambos bem-sucedidos nas suas profissões. Faz menos de uma semana da morte da minha mulher. Ainda me sinto abatido pela perda que mudou para mim os rumos e o sentido da vida.
Sentados à mesa da sala da casa simples, onde moro agora sozinho, começamos a conversar. O assunto é sobre o meu futuro.
Um frio percorre-me a espinha. Logo tentando convencer-me de que o melhor para mim é passar a viver num lar geriátrico. Reajo. Argumento que a sombra da solidão não me assusta. A velhice, muito menos. Mas, os meus filhos insistem. Dizem que gostariam que eu fosse morar com um ou o outro. Lamentam, entretanto, que as dependências de seus amplos apartamentos à beira-mar estejam ocupadas. Além disso, eles e as minhas noras trabalham. Portanto, não teriam como me assistir. Isso sem contar com os meus netos, sempre impossíveis.
Em meu favor, argumento já sem muita convicção que, nesse caso, eles poderiam ajudar-me a pagar uma cuidadora. À minha frente, o médico e o engenheiro dizem que seriam necessárias, na verdade, três cuidadoras em três turnos e todas com carteira profissional. O que gastaria, em tempos de crise, uma pequena fortuna ao fim de cada mês. Sucumbo à proposta de ir viver num lar. Aí vem outra sugestão: preciso vender a casa. O dinheiro servirá para pagar as despesas do lar geriátrico por um bom tempo, sem que ninguém se preocupe. Nem eles, nem eu...
Rendo-me aos argumentos por não ter mais forças para enfrentar tanta ingratidão. Não falo sobre o sacrifício que fiz durante toda a vida para custear os estudos de ambos. Não digo que deixei de viajar com a família, de frequentar bons restaurantes, de ir a um teatro ou trocar de carro para que nada lhes faltasse. Não valeria a pena alegar tais factos nesta altura da conversa. Daí, sem dizer uma só palavra, decido juntar os meus pertences. Em pouco tempo, vejo uma vida inteira resumida a duas malas. Com elas, embarco rumo à outra realidade, bem mais dura. Um abrigo de idosos, longe dos filhos e dos netos.
Hoje, nos braços da solidão, reconheço que consegui ensinar valores morais aos meus filhos, mas não consegui transmitir a nenhum deles uma virtude chamada gratidão..."