sábado, 28 de junho de 2014

A dor do abandono

Era uma manhã de sol quente e céu azul, quando o caixão contendo um corpo sem vida foi baixado à sepultura. De quem se trata? Quase ninguém sabe. Poucas pessoas acompanham o féretro. Ninguém chora. Ninguém sentirá a falta dela. Ninguém para dizer adeus ou até breve.
Depois que o corpo desocupou o quarto do asilo, onde aquela mulher passou boa parte da sua vida, a responsável pela limpeza encontrou numa gaveta ao lado da cama, umas anotações. Um diário sobre a dor... Sobre a dor que ela sentiu por ter sido abandonada pela família num lar para idosos... Talvez o sofrimento fosse muito maior, mas as palavras só permitem extravasar uma parte desse sentimento, gravado nalgumas frases:
Onde andarão os meus filhos? Aquelas crianças sorridentes que embalei no meu colo, alimentei com o meu leite, cuidei com tanto zelo, onde estarão? Estarão tão ocupados que não possam visitar-me, ao menos para dizer olá, mãe? Ah!... Se eles soubessem como é triste sentir a dor do abandono... A mais deprimente solidão... Se ao menos eu pudesse andar...
Mas dependo das mãos generosas destas raparigas que me levam todos os dias para apanhar um pouco de sol no jardim... Jardim que já conheço como a palma da minha mão.
Os anos passam e os meus filhos não entram por aquela porta, de braços abertos, para me envolverem com carinho, com afectos...
Os dias passam... E com eles a esperança vai-se... No começo, a esperança alimentava-me, ou eu a alimentava, não sei... Mas, agora... Como esquecer que fui esquecida? Como engolir esse nó que teima em ficar na minha garganta, dia após dia?
Todas as lágrimas que chorei não foram suficientes para desfaze-lo... Sinto que o crepúsculo desta existência se aproxima... Queria saber dos meus filhos... Dos meus netos... Será que ao menos ainda se lembram de mim? A esperança, agora, parece estar atrelada aos minutos... Que a arrastam sem misericórdia para bem longe de mim...
Às vezes, em sonhos, vejo um lindo jardim, que transcende os muros deste albergue e se abre em caminhos floridos que levam a outra realidade, onde braços afectuosos estão à minha espera com amor e alegria... Mas, quando acordo, é a minha realidade que eu vejo... Que eu vivo... Que eu sinto... Um dia alguém me disse que a vida não se acaba num túmulo escuro e silencioso... Que a vida continua após a morte, de uma outra forma... Mas com certeza a minha matéria, a minha mente, o meu eu, desta vida que vivo agora, com o nome que tenho, nunca mais existirá! E quando a morte chegar, só vai restar a saudade que com o passar do tempo se ameniza... (se é que alguém vai sentir saudades minhas, já que não sentiram enquanto ainda estou viva neste asilo...)
Sinto que a minha hora está a chegar... Depois, quando eu partir, gostaria que alguém encontrasse estas minhas anotações e as divulgasse. E que elas pudessem tocar os corações dos filhos que internam os seus pais em asilos e nunca os visitam... Que eles possam saber um pouco sobre a dor de alguém que sente o que é ser abandonado... Pensem que a cada pai e a cada mãe Deus perguntará: O que fizestes do filho confiado à vossa guarda? E aos filhos: O que fizestes aos vossos pais?



Joaquim Maneta Alhinho

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A culpa morre sempre solteira...

Popularmente afirma-se que “a culpa morre sempre solteira”, querendo com isso dizer que, voltas dadas, contas feitas, não se consegue descobrir o par à altura. Não se é capaz de descobrir o tal culpado, a criatura que começou a intriga ou o crime, o responsável último da acção nefasta.
Se nem que seja o partir de um copo tenha de ter um culpado, o facto é que se arranjam fórmulas mágicas de aliviar responsabilidades e explicar, com indiscutível mérito e razoável imaginação, que foi por causa de um outro, que o copo não devia estar ali, que alguém o pôs ali de propósito para ser partido e arranjar uma situação desagradável.
Ficamos, pois, com um copo partido e um extraordinário complô, que, não explicando coisa alguma, dilui responsabilidades e anula culpas.
Se com copos isto é assim, imaginem com o resto.
A questão, porque de facto o ser assim levanta, pelo menos, uma importante pergunta, é a de saber por que é que parece tão difícil assumir que cometemos erros, nos enganamos, avaliamos mal a situação, desempenhámos ineficazmente a tarefa de que estávamos incumbidos, fomos arrogante, desprezámos indicadores vitais, não tínhamos razão, desmotivámo-nos, desinteressámo-nos, facilitámos, confiámos em quem não devíamos, não tivemos atenção, enfim, o que se queira, sempre no território das desculpas que, ainda assim, não depreciem o mea culpa fundamental. Percebe-se que os actos criminosos ou delinquentes se arredem desta lógica.
Não se percebe por que é que assuntos comezinhos e quotidianos tenham de ser enrodilhados em histórias compridas e mal contadas, em que os factos se distorçam e o que apareça como produto final seja uma nebulosa de mal-entendidos, zangas pessoais, acusações mútuas, afirmações desgarradas de princípios, que normalmente não vêm nada a propósito.
Dir-se-ia que se confunde a assunção da culpa com o castigo. Que parece que se acredita que basta dizer-se que se errou para merecer a sanção colectiva do desamor, do desrespeito ou do desprezo, e que, por essa via, acreditando que a sorte de um homem é escapar, vale tudo para instalar a dúvida e fugir à punição. Ou então, e igualmente grave, que obliteramos o senso de responsabilidade e não o desenvolvemos o suficiente para viver pacatamente em sociedade.
Chegados aqui, parece que temos de concluir uma de duas coisas: ou, de facto, somos todos educados, e educamos com tantos “panos quentes” que assumir o que quer que seja de motu proprio é um exercício demasiado sofisticado; ou tememos mais a crítica social do que estimamos a velha e boa ideia de termos a consciência tranquila.
Em qualquer dos casos, venha o Diabo e escolha.


Joaquim Maneta Alhinho