sábado, 28 de março de 2015

Vamo-nos arrastando...


Arrastamos os dias como podemos e sabemos. Às vezes encarrilamos em tarefas que, de algum modo, nos divertem; outras vezes sentimos desafios e entusiasmos; por vezes ficamos entristecidos, zangados e infelizes; mas, genericamente distraímo-nos com pequenos acontecimentos e afazeres que esquecemos mal terminam e parecem não deixar qualquer rasto.
Os dias correm com alguma monotonia, ainda que os mais hábeis aprendam a dosear as quantidades certas da rotina que os tranquiliza e da novidade que os desperta e inquieta.
Excepcionalmente, muito excepcionalmente, alguns mergulham em estado de graça.
Vinda de um confim qualquer, indizível e misterioso, chega à consciência uma espécie de energia transformadora que faz a diferença.
Porque tal acontece, tudo o que nos rodeia ganha uma nova e diferente profundidade e nitidez. As cores, os odores, as formas, deixam de ser as conhecidas, as vulgares de sempre e adquirem um tom brilhante como se um manto diáfano de belo cobrisse tudo. As pessoas com que nos cruzamos parecem vivificadas, mais interessantes, humanas e calorosas. As cidades, os prédios, as ruas, os escritórios deixam-se também tocar por essa estranha graça que os transforma em organismos quase vivos, claros e vibrantes. Os problemas por resolver, as dúvidas do costume, as expectativas acalentadas e escondidas, de repente perdem peso, perdem espaço. Uma inefável sensação de bem-estar impregna de leveza e claridade o que pouco antes era amorfo, incolor e mesmo obscuro.
O corpo, o nosso corpo, transforma-se num santuário de prazer. Um prazer beatífico mas pungente que emana em todas as direcções e que, também ele leve e renovado, consegue fazer as pazes com todas as antigas maleitas, todas as imperfeições, todas as insuficiências antes conhecidas e experimentadas.
Alguns associam este estado de graça a acontecimentos específicos como uma paixão amorosa, uma gravidez muito desejada ou uma situação capaz de introduzir ruptura com os sentidos habituais, como por exemplo a sobrevivência a uma doença ou a acidente grave.
Outros sabem que o estado de graça pode acontecer apenas porque sim, eventualmente para nos fazer sentir que viver pode ser, além de um facto de natureza, uma dádiva única que há que celebrar.


Joaquim Maneta Alhinho

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