terça-feira, 24 de novembro de 2015

Vida Real com gente real!


Morreu um outro Joaquim.
Um dia cabe-me a mim…

Foi esta madrugada em plena baixa de Lisboa que morreu o Joaquim.
Não era actor nem artista. Não era famoso, nem conhecido. Não tinha fama. Era só o Joaquim.
Era apenas um homem que tinha passado pela guerra, que tinha sido abandonado pela nação e pelo povo pelo qual lutou. Um homem cuja vida era passada entre um embrulho de papel e uma resma de jornais, sendo estes o seu cobertor que noite após noite abraçava o seu corpo cansado, das cicatrizes dos homens e das mulheres que por ele passavam e nem um olhar lhe dirigiam.
Era o Joaquim. Homem que não se achava merecedor de uma cama quente, de um duche tranquilizante, de um prato de sopa que lhe apazigua-se o “rato” que amiúde lhe roía o estômago. Era o Joaquim de carrinho de supermercado nas mãos com o qual transportava os seus pertences. Os seus bens mais preciosos.
O Joaquim...
O homem de sobretudo roto, barba comprida entrançada pela sujidade, rugas profundas resultantes de uma vida cansada, desnorteada, carente de um ombro amigo, de uma palavra de alento ou de um sorriso infantil.
Morreu o Joaquim.
Aquele que sorria para todos sem contrapartida, que brincava aos loucos com a plena consciência do seu estado de miséria, aquele que ouvia dizerem-lhe:
- Este é que leva a vida a bem e sem preocupações.
Sim...
Foi esse o Joaquim que morreu.
O Joaquim que tu, eu e todos nós não demos a devida importância.
Morreu o Joaquim. Sem honras, sem reconhecimento. Profundamente esquecido por uma sociedade hipócrita e egoísta de falsos princípios apregoados à vista de todos e olvidados em privado.
Morreu o Joaquim...
Aquele que um dia pode vir a ser qualquer um de nós. Um dia cabe-me a mim…

Morreu e foi enterrado em absoluto silêncio.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A visita ao Carlos Cruz

Eu vi no seu olhar e senti no abraço forte que me deu seguido de um silêncio mordaz.
Depois disse-me ainda com voz trémula: «Vocês são fantásticas(os)».
Ele sente que o povo o crucificou sem provas mas é reconhecedor de que muita gente do seu país sempre acreditou na sua inocência.
Para mim a visita a este amigo foi carregado de peripécias logo desde a entrada.
A máquina não parava de apitar. Tire os sapatos, dizia a guarda prisional. Mais uma passagem e a máquina insistia no apito. Tire o cinto, por favor!
Aqui, respondi: - «Mau...Querem ver que ainda vou nu!» A jovem guarda sorria, mas ainda me perguntou: Têm alguma prótese? E eu respondi de pronto: - «Que eu saiba não!» Aqui é que foram elas, a jovem guarda dobrou-se de tanto rir, pegou-me no braço e lá fui eu com os sapatos e o cinto numa mão e com a outra a segurar as calças, no trajecto pelas escadarias, pelo enorme corredor até chegar ao amigo Carlos Cruz. Não me largou o braço até que o Carlos ao abraçar-me perguntou: «Então Alhinho, continuas um modelo, pá! Como vão as tuas mulheres?» Aqui, a jovem guarda encostou-se à ombreira da porta com dores no estômago de tanto sorrir e caminhou deambulando curvada pelo corredor.
Ambos ficámos felizes e durante a hora que dialogámos li no seu olhar a sua inocência. Só um cego não vê...Sente-se injustiçado, inconformado e revoltado, mas com muita coragem para enfrentar a decisão que a juíza irá proferir a partir de 2 de Dezembro.
As dores nas costas e no ombro são penosas, mas resisti firme, qual guerrilheiro na primeira fila da batalha e que não tem medo de dar o corpo às balas.
Falámos do seu próximo livro que acabou de corrigir e também falámos do meu, que vai ser muito polémico. Aqui, depois de lhe traçar ao de leve sobre o seu conteúdo, avisou-me: «Alhinho, vê lá onde te vais meter!»
Amanhã, conto o resto, ok?
Ah, na saída já composto fui buscar os meus pertences à recepção. Quem lá estava? A jovem guarda que me deu uma bolsa de pano. Agradeci-lhe com um sorriso e dirigi-me à porta de saída de sacola às costas. De repente ouço a sua voz, «Ó senhor, a bolsa não é para levar para casa é só os seus pertences». Voltei-me e deixei de a ver. Aproximei-me do balcão e lá estava ela novamente curvada com a mão no estômago de tanto sorrir.
Lá diz o velho ditado: "Vale mais cair em graça do que ser engraçado."
Ficou-me a satisfação de ter deixado naquela manhã duas pessoas felizes: O amigo Carlos Cruz e a morena guarda prisional.

sábado, 7 de novembro de 2015

O meu "Ti Jaquim": De saudável até à supultura

O meu tio “Jaquim” sempre esteve bem de saúde.
Ao completar 70 anos, quer a minha tia Genoveva, quer a minha prima Bia conseguiram convencer o meu tio a ir ao médico para fazer um check-up.
Embora se sentisse óptimo e cheio de energia, mas com a palavra prevenção na cabeça, lá fez uma deslocação ao clínico.
Sabiamente, o médico, mandou-o fazer análises, radiografias, ecografias e afins. Duas semanas mais tarde, foi mostrar os resultados ao médico e soube que estavam bons, mas que tinha algumas coisas em que poderia melhorar.
Receitou-lhe:
Comprimidos Atorvastatina para o colesterol.
Losartan para a hipertensão.
Metformina para evitar diabetes.
Polivitaminas para aumentar as defesas.
Desloratadina para a alergia.
Como eram muitos medicamentos, tinha de proteger o estômago, então recomendou-lhe o Omeprazol e um diurético para os inchaços.
O meu tio “Jaquim” foi à farmácia e gastou uma boa parte da sua magra pensão de reforma em várias caixas requintadas com nomes esquisitos e de cores sortidas.
Como não conseguia lembrar- se se os comprimidos verdes para a alergia deviam ser tomados antes ou depois das cápsulas para o estômago e se devia tomar o branco para a hipertensão antes ou depois das refeições, voltou ao médico.
Este deu-lhe uma caixinha com várias divisões, mas achou que o meu tio estava tenso e algo contrariado. Receitou-lhe, então, Alprazolan e Sucedal para dormir.
Naquela tarde, quando ele entrou na farmácia com as receitas, o farmacêutico e os seus funcionários fizeram uma fila dupla para ele passar pelo meio, enquanto o aplaudiam.
O que é facto evidente era que o meu tio em vez de melhorar foi piorando.
Ele tinha todos os remédios num armário da cozinha e quase já não saía de casa. Já não ia à taberna do velho Bagulho beber um copito e já não se sentava nos bancos com os amigos, no Largo de S. Francisco, em Vila Boim.
Dias depois, o laboratório fabricante de vários medicamentos que ele usava, atribuiu-lhe um cartão de “Cliente Preferencial”, um termômetro, um frasco estéril para análise de urina e uma caneta com o logotipo da farmácia.
No pouco tempo que lhe sobrava entre as tomas dos remédios dava uma volta pelo quintal da sua casa e acabou por ficar engripado.
A minha tia, como de costume, fez com que fosse para a cama, mas, desta vez, além do chá com mel, chamou também o médico.
Ele disse que não se preocupassem que não era nada de grave, mas prescreveu Tapsin para tomar durante o dia e Sanigrip com Efedrina para tomar à noite. Como estava com uma pequena taquicardia, receitou Atenolol e um antibiótico, 1 g de Amoxicilina a cada 12 horas, durante 10 dias. Entretanto, começaram-lhe a aparecer fungos e herpes, e ele receitou o Fluconol com Zovirax.
Para piorar a situação, o tio “Jaquim” começou a ler os folhetos de todos os medicamentos que tomava e ficou sabendo as contra-indicações, advertências, precauções, reações adversas, efeitos colaterais e interacções médicas.
Leu coisas horríveis… Não só podia morrer mas poderia ter também arritmias ventriculares, sangramento anormal, náuseas, insuficiência renal, paralisia, cólicas abdominais, alterações do estado mental e um cento de coisas terríveis.
Com medo de morrer, chamou o médico, que disse para não se preocupar com essas coisas, porque os laboratórios só colocavam essas coisas todas nos folhetos para se isentarem de culpas.
- Calma, Sr. Joaquim, não fique aflito? - disse o médico, enquanto prescrevia uma nova receita com um antidepressivo Sertralina com Rivotil 100 mg e como o meu tio estava com dores nas articulações deu-lhe o Diclofenac.
Nessa altura, sempre que o meu tio recebia a pensão ia directo para a farmácia, onde já tinha sido eleito cliente “VIP”.
Os dias passavam depressa com tanta toma de medicamentos que uma noite deitou-se e já não acordou. O meu tio “Jaquim” tinha morrido!
No funeral tinha muita gente mas quem mais chorava era o farmacêutico. A minha tia dizia aos familiares que felizmente mandou o marido ao médico na altura certa, porque senão, ele teria morrido mais cedo.

Qualquer semelhança com casos reais é pura coincidência!