Ela ouviu-o chegar, esmagou
imediatamente o cigarro no pequeno cinzeiro marroquino comprado numa das lojas
do Martim Moniz, em Lisboa, e deitou-se para trás, com os braços cruzados
debaixo da nuca.
As cortinas duplas cor de laranja
estavam corridas…A luz solar que entrava, suavizada, no interior do quarto
espelhava-se um clarão ensanguentado na pele nua.
Dobrou um pouco a perna esquerda e
fixou a porta com um olhar cheio de expectativa.
Lá fora, a voz dele soava, imprecisa.
Tinha parado, no longo corredor, para falar com a Adelaide, tal como acontecia
sempre que se preparava para entrar naquele quarto da pensão.
Não era por cortesia que se demorava
alguns minutos com a gerente da pensão: tratava-se de um sentimento de vergonha,
de culpa, que se traduzia por palavras acompanhadas de uma nota, que a Adelaide
encontraria, em seguida, na algibeira do seu avental ou debaixo do telefone,
mimando-a para assim consolidar o seu silêncio.
Raquel espreguiçou-se ao sol filtrado
pela cortina alaranjada, passou as mãos pelo corpo liso e esbelto, depois
desgrenhou os cabelos, de um louro acobreado. Ele gostava daquele aspecto
selvagem, daquela negligência primitiva, que o transportava para além da
estreiteza da sua vida quotidiana.
Ela imaginava-o agora no corredor:
elegante, não muito esguio, bem de carnes, tal como se tinha qualificado a si
mesmo, uma vez, por brincadeira.
Passos.
A mão pousou no fecho da porta…
Raquel deitou uma olhadela para o
relógio. Meio dia e dez. Dez minutos de felicidade desperdiçada.
«Ele tem escrúpulos demais», pensou.
«Fala, fala, para se tranquilizar. É sempre assim de cada vez, antes de se
libertar de tudo neste quarto para se tornar um outro homem. Não mais o marido
que engana a mulher, que seduziu a esposa do seu melhor amigo, que se introduz
em segredo na pensão, em Almada, e se desembaraça, com a roupa, da
personalidade do famoso arquitecto, da marca que a sociedade lhe impôs. Aqui,
neste quarto, renasce uma vez por semana, às sextas-feiras, do meio dia às duas
horas da tarde.»
Raquel voltou a deitar-se, com os
braços estendidos, enquanto a porta se abria e se fechava sem ruido.
Duarte, parado no enquadramento da
porta, contemplou Raquel em silêncio.
O seu corpo brilhava no sol
alaranjado. Era tão bela que o fazia perder o fôlego. A perfeição deixava-o
mudo…
- Boa tarde, minha deusa – disse o
Duarte por fim.
Aproximou-se, sentou-se à beira da
cama e meteu as mãos pelos cabelos desgrenhados.
- Boa tarde, leãozinho!
Aproximou a cabeça e beijou-o com a
paixão como ele sonhava nos dias de ausência. Experimentou sob o deslizar dos
seus dedos a maciez do belo corpo dela e sentiu que a sua própria metamorfose
começava.
- Estás cada vez mais bonita –
disse-lhe, com uma voz enrouquecida. – Tenho medo!
- De mim?
Raquel sorriu e as suas longas pernas
envolveram-lhe a cintura.
- Um dia, farei a figura de macaco ao
pé de ti. É inquietante o quanto és bonita.
Passou a camisa por cima da cabeça e
atirou-a para os pés da cama.
- O que me consola é que os outros
homens não conseguem tirar todo o partido de ti.
- De quanto tempo dispões? –
perguntou ela.
- Precisamente as duas horas do
costume! Sabes bem…
- Sim, e fico doente antes mesmo de
entrar neste quarto: o amor cronometrado como uma refeição de cantina escolar!
Ela levantou os joelhos e fechou-os
nos braços, apoiando neles o queixo, com o olhar cravado no Duarte, enquanto
ele acabava de se despir, e, preocupado com os vincos das calças, colocava-as
cuidadosamente nas costas de uma cadeira.
- Amo-te, meu leãozinho – disse ela
muito baixo. De repente a sua voz tinha inflexões diferentes, quase infantis: -
Amo-te de verdade, não só porque o amor é bom, como uma torta de Azeitão ou um
moscatel de Setúbal. Detesto este jogo de escondidas, este quarto de pensão, os
passos deslizantes, discretos, da senhora Adelaide, as mentiras em casa, as
cenas que temos de representar quando nos vemos fora deste refúgio, a
hipocrisia, quando beijo a tua mulher na cara e tu apertas o Toni contra o teu
peito, a fim de mostrares a tua cordial amizade. Como tudo isto é nojento!
Porque não podemos amarmo-nos e reconhecê-lo face ao mundo inteiro?
- Tínhamos prometido não voltar a
falar nisso, Raquel.
Duarte agarrou-a pelos ombros e
puxou-a contra si.
O corpo da Raquel deslizou debaixo do
seu e ele sentiu, primitivo e violento, o desejo dela por ele. Os grandes olhos
verdes, debaixo dos cabelos emaranhados, tinham-se tornado mais brilhantes e a
sua respiração acelerou.
- Tu és a minha deusa! – disse, com
uma voz rouca.
No arrebatamento do seu abraço, ela
deixou-se cair para trás e o sol de laranja explodiu ao mesmo tempo que o
universo, numa sensação de prazer que ninguém em palavras conseguiu ainda explicar.
Era quase um quarto para as duas
quando a Raquel começou a respirar de uma forma estranha nos braços do Duarte.
Parecia um ligeiro estertor, entrecortado por uma tentativa de retomar a
respiração, que soava como um suspiro. Havia qualquer coisa que lhe asfixiava a
garganta.
Os seus grandes olhos tomaram uma
espécie de fixidez, tornando-se estranhos…O medo gritava no seu olhar misturado
com um terrível pressentimento. O corpo tremia ainda sob as ondas ardentes do
prazer, a que esta sensação esmagadora, desconhecida, se misturava já. Duarte
não o notou imediatamente. A sua embriaguez era absoluta, o seu céu irradiava
mil fogos crepitantes.
E o grito da Raquel, que devia ter
sido um grito de prazer não passou de um suspiro forte.
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