Uma vez ainda, ela empinou-se,
resistiu a qualquer coisa de desconhecido em si mesma e, com uma acuidade nunca
conhecida, sentiu o contacto das mãos dele, dos seus lábios quentes, do seu
corpo e do seu olhar mergulhado nos dela cujo êxtase lhe pareceu a própria
expressão da crueldade, até que tudo se extinguiu no dilaceramento profundo de
uma picada tão fulgurante que a respiração dela parou.
Duarte só notou a mudança de Raquel
quando, querendo retomar o folego, se imobilizou. Notou a falta do abraço feroz
da Raquel, durante aqueles momentos, tal como o cruzar brusco das pernas sobre
as costas dele, acompanhado por um riso arrulhador, através do qual ela
proclamava a sua superioridade. Agora, ela estava estendida, com os olhos
fechados, completamente calma, com o rosto descontraído e os lábios
entreabertos.
Duarte respirava de forma ofegante e acariciou-lhe a face e
deu-lhe um beijo. Os lábios dela estavam estranhamente frios e ele já ia dizer:
«Minha querida, hoje custas mais a degelar que um icebergue!», quando os braços
dela se desprenderam dele, deslizaram e caíram ao seu lado na cama. De repente,
tinha ficado livre do abraço dela. Lamentavelmente, o queixo dela descaiu. Os
lábios arroxearam.
O Duarte não percebia ainda o que se tinha passado.
Sentou-se, acariciou os seios dela e sorriu.
- Acaba com essa brincadeira! – disse, respirando
profundamente. «Um homem de cinquenta anos precisa de facto de ter muito fôlego
para amar uma mulher como a Raquel», pensou.
- Vamos, não finjas que és vencida, triunfaste como sempre!
Raquel não se mexeu. Apenas a sua face mudou de novo. Os
traços acentuaram-se, como que minguados, emaciados.
Duarte passou as duas mãos pelo rosto, depois esfregou no
lençol as palmas cobertas de suor.
- Raquel – voltou ele a dizer -, o que quer isto dizer? Pára,
não gosto deste jogo. É macabro.
Silêncio.
O corpo radioso, banhado pela claridade alaranjada, não se
mexeu. Estava frio quando o Duarte o tocou e depois o sacudiu.
- Meu Deus…não é verdade! Não pode ser…É impossível…
Lutava contra a verdade, porque ela é incompreensível,
incomensurável nas suas repercussões destruidoras.
- Raquel! Raquel!...O que é que tu tens? Eu…Eu…
Gaguejava, os pensamentos misturavam-se-lhe, o pânico
avassalava-o.
Absurdamente – sabia-o -, pôs-se a massajar-lhe o coração, a
insuflar-lhe ar nos pulmões, tal como se faz com os afogados aos quais se tira
a água que penetrou nos brônquios.
Abriu-lhe a boca e tentou praticar o boca-a-boca, mas
conseguiu apenas um beijo ofegante, sem parar de lhe sacudir o corpo, de o
voltar, de o apertar contra si; finalmente, tremeu de horror ao verificar que
cada vez arrefecia mais e mais, enquanto os membros se tornavam rígidos.
Mecanicamente, foi tomar duche, depois vestiu-se, atirou
sobre a Raquel a coberta acolchoada e olhou-se fixamente no grande espelho
colocado no fundo do quarto. Os seus olhos estavam marcados, por baixo, por
profundas olheiras devidas a este incidente, mas o seu olhar continuava vazio,
desamparado.
«Morreu!», pensava ele. «Raquel morreu! No quarto de uma
pensão de ocasião. Está ali deitada, queimada pelo fogo da sua paixão, e agora
vai causar um desabamento nas duas famílias e na sociedade. Irei encontrar-me
com o Toni e terei de lhe dizer: ‘Toni, a tua mulher morreu, hoje, perto das
duas horas da tarde, nos meus braços. Neste momento podes abater-me, porque a
Raquel era minha amante. Desde há um ano, todas as sextas-feiras nos
encontrávamos naquela pensão e dizia-te que ia à cabeleireira. Toni, ela
enganava-te comigo.’»
E à sua mulher Luísa, teria de dizer: «A Raquel morreu. Ela
era minha amante, tu nunca desconfiaste porque quando estávamos todos juntos
soubemos ser bons actores e representar muito bem. Por aqui, por ali, um beijo
roubado…éramos excelentes amigos! Sei que o teu instinto fez com que nunca
gostasses dela, até porque reconhecias a beleza tirânica do seu corpo. Mas
nunca te terá passado pela cabeça que eu…E agora?»
Duarte engoliu dificilmente a saliva e afastou-se do espelho.
Tinha de telefonar para o escritório para dizer que já não
voltava hoje. Tinha muitas desculpas plausíveis ao seu dispor: fiscalização das
obras em curso, encontro com um novo empreiteiro, escolha de pavimentos…Um
arquitecto tem mais de cem motivos para justificar a sua ausência.
Duarte passou a mão pelo cabelo e saiu do quarto.
Adelaide ao sair dos seus aposentos, dirigiu-se a ele. Não
era seu hábito ver partir os clientes que, durante duas horas, ocupavam um
quarto em sua casa. Vivendo desses alugueres, temia embaraçá-los. A sua
reputação, entre os senhores que frequentavam a sua casa, assegurava-lhe a
melhor publicidade, atraía continuamente novos clientes discretos, generosos,
para os quais ela representava uma cúmplice. Pagavam bem, não preenchiam
nenhuma ficha de entrada, o que evitava que as verbas recebidas fossem
colectadas.
- Está na hora, senhor Duarte…- disse-lhe a Adelaide com a
familiaridade de uma confidente.
Duarte apertou entre os dedos a mola da gravata e fez-lhe
sinal para se aproximar.
- Senhora Adelaide, suplico-lhe neste momento que me ajude,
não grite, aguente o choque por favor. - Passou-se qualquer coisa de terrível,
de imprevisível. Raquel…quero dizer a senhora…
Engoliu o nome e deu um passo para o lado.
Adelaide observou aquele cenário em silêncio levando as mãos
à cara. O terror de todos os hospedeiros que alugavam quartos ao dia
insinuava-se nela: a morte numa cama sua!
Tinha lido e ouvido contar acidentes como aquele nos hotéis e
não mereciam muita importância, chamava-se a polícia e os bombeiros, o morto
era discretamente encaminhado através de uma porta traseira que existe sempre
para o exterior.
Aqui existia uma mulher desconhecida, nua, um amante, nenhuma
ficha preenchida, um escândalo. A imprensa falaria: «A morte no ninho do
amor»…E a sua fotografia sairia em todos os jornais e nas televisões.
- Trombose venosa cerebral? – perguntou finalmente a senhora
Adelaide.
- Talvez. Ao princípio nem notei…
- E agora? – perguntou a hospedeira.
- Essa é também a pergunta que faço a mim mesmo. É preciso
levar daqui o corpo.